“O design está se tornando algo complexo”

(Foto: Marcus Camargo)

(Foto: Marcus Camargo)

Foi em meio às batidas do som e o tilintar das taças de champanhe, em uma noite de Papo Design, que Fernando Mendes reservou tempo para um papo sobre design com nosso Blog AZ. O design faz parte da vida e inspira Fernando na hora de mergulhar nas possibilidades da forma e do encaixe da madeira. “Essa mistura de sensações que uma peça de mobiliário desperta é o que me encanta”, confessou.

Fernando descobriu quando era ainda jovem que seu ídolo do design era também seu primo. Unidos pelos laços familiares e pela paixão ao design, Sergio Rodrigues e Fernando Mendes trabalharam juntos por mais de 20 anos, parceria que se encerrou com a morte de Sérgio no fim do ano passado. Todas essas histórias foram relembradas na entrevista que o designer concedeu ao Blog AZ:

 

Quando você fala em design, sempre defende o trabalho de uma marcenaria de verdade, o que seria essa marcenaria?

Quando eu faço referência a essa marcenaria, me aludo ao uso das técnicas de marcenaria milenares por meio do encaixe na produção do design de móveis contemporâneo. A marcenaria é atenda a uma construção artesanal antiga ou nova, basta saber usar. A utilização do encaixe da madeira com o mínimo de intervenção de outros materiais, como o prego, é o que chamamos de uma marcenaria de verdade.

 

É possível usar essa marcenaria de verdade em um atelier de grande produção?

Sim, é possível desde que o atelier desenvolve uma série de mecanismos para poder produzir utilizando a marcenaria artesanal. Hoje, existe no mercado o CNC, comando digital para operar uma fresa, que cria o formado e faz o encaixe da madeira. A [máquina] CNC não é uma tecnologia nova, desde o início da década de 1930 os escandinavos já utilizavam esse mecanismo para fazer os encaixes da madeira de forma seriada para uma produção de maior escala. Quer dizer, os escandinavos já utilizavam esses gabaritos para produzir os móveis de forma muito sofisticada há mais de 70 anos atrás, produzindo peças extremamente elaboradas com um suporte fabril bastante tradicional. É uma tecnologia que não se utiliza uma interface digital e sim a inteligência.

 

Você costuma criticar a questão de o trabalho manufaturado ser relegado à segunda categoria. Essa desvalorização é uma tendência mundial ou é recorrente apenas no Brasil?

Acho que desconsiderar o trabalho artesanal e manufaturado ainda é uma tendência mundial, mas que está mudando. Ainda acho que aqui no Brasil é um pouco pior. Os brasileiros tem a cultura, herdada da colonização portuguesa, de acreditar que é preciso ter um nível universitário para se dar bem na vida e como a arte da manufatura é ligada a um setor mais técnico, a gente desprestigia. Em razão do preconceito, falta no mercado brasileiro pessoas com maior formação técnica e essa tendência acaba inclusive por atrapalha a nossa economia. É muito difícil contratar pessoas do setor técnico no mercado. Eu já tive um funcionário alemão com formação no setor técnico na Alemanha e ele achava estranho esse desprestígio. Seus amigos brasileiros, de nível universitário, não entendiam como um alemão que falava inglês não tinha uma formação superior, como se essa ausência deixasse o seu trabalho menos importante. As pessoas não compreendiam como ele estava se ‘sujeitando’ ao trabalho de marceneiro, como se fosse uma profissão que exigisse pouca inteligência – o que não é verdade. A marcenaria dá a oportunidade de a pessoa desenvolver trabalhos incríveis que exigem inteligência e muito estudo elaborado. É uma profissão que não fica a dever nada para nenhuma outra.

 

Algumas pessoas acreditam que o design mobiliário e o design de modo geral são uma espécie de arte, já outros a tratam como uma profissão. Qual é a sua opinião a respeito desse debate?

O design hoje em dia tem uma característica interessante de se tornar uma área de interesse que abriga um monte de inteligência. Ele surgiu como uma maneira de aliar forma, função, fabricação e emoção para despertar interesses e criar algo que tenha um lado artístico e outro funcional. Ou seja, deve unir a beleza da arte com a funcionalidade do produto comercial, pois não adianta criar algo belo que não possa ser levado para a fábrica ou ser de fácil produção fabril e não ter nenhuma beleza atrativa. O design hoje em dia está abraçando cada vez mais áreas, já que tem essa peculiaridade de ir agregando inteligências e interesses. Um cabeleireiro, por exemplo, se tornou um hair designer. O design está se tornando algo mais complexo.

 

Tanto seu trabalho como o de Sérgio Rodrigues são bastante modernistas. Como você abraçou esse tipo de criação e, junto com Sérgio, produziu peças bastante atemporais?

O design atemporal é aquele que cria objetos com uma expressão tão forte que passa pelo tempo e continua agradando, sendo interessante e atual. É o que chamamos de clássico. Claro que o clássico não nasce com essa característica, ele se torna clássico de acordo com o tempo e sua aceitação. Meu trabalho é muito ligado às décadas de 1950 e 1960 em razão do meu interesse por essa tecnologia escandinava da marcenaria de encaixes. Como os escandinavos ficam muito tempo dentro de casa, já que os países nórdicos são muito frios, eles se preocuparam em desenvolver peças atentas ao aconchego dos móveis e a uma beleza limpa, minimalista e sem muito rebuscamento. São móveis confortáveis, duráveis e gostosos de usar. Essa mistura de sensações que uma peça de mobiliário desperta é o que me encanta. Outro fator que despertou meu interesse foi o trabalho de marcenaria com o encanto da textura e dos cheiros. A marcenaria tradicional é uma atividade que mexe muito com os sentidos. Espero até um dia conseguir descolar disso, mas esse vínculo não é uma preocupação pra mim. Eu crio inspirado pelo trabalho da marcenaria e pelo fascínio de desenhar as peças à mão. Aprendi com o Sérgio [Rodrigues], que tinha uma paixão pelo desenho, a importância da criação inicialmente manual do trabalho moveleiro.

 

Dentro dessa criação mais tradicional ou industrial e da criação autoral, você acredita que podemos distinguir o bom do mau design?

Eu não sou um crítico de design, mas acredito que o bom design venha da sensibilidade de se gostar de criar e produzir. Existem coisas que são boas e outras que não; que têm uma estrutura equivocada para a sua fabricação ou uma estética sem inspiração, copiada ou sem conforto. O conforto não deve ser desprezado em nenhum momento. O design tem que abraçar a arte, o conforto, o saber fazer e a beleza do mobiliário.

 

Você fala muito na questão do encanto e de gostar do design e todos que falam em Sérgio Rodrigues lembram dessa mesma característica apaixonada que ele tinha de encarar o design. Como foi trabalhar com ele?

Depois de mais de 20 anos de convivência com Sérgio que percebi o que foi a maior influência dele na minha vida e no meu trabalho e essa influência foi exatamente essa paixão e emoção que ele teve com o ofício. O Sérgio batalhou em um momento que não existia um design brasileiro. Tinham poucas pessoas fazendo alguma coisa que expressasse uma cultura nacional dentro da fabricação de mobiliário e dos espaços institucionais. Ele começou a se dedicar ao mobiliário com uma crença e uma vontade tão forte de fazer acontecer que foi em frente atravessando bons e maus momentos sem nunca abandonar o entusiasmo.

 

Praticamente tudo que ele criou teve uma força grande e uma enorme repercussão no mundo do design.

Sim, e essa conquista veio da ligação que ele tinha com a emoção. Acho que ele queria tocar as pessoas com a sua criação. Sérgio foi um homem muito carismático, mas tinha essa coisa de atingir e provocar o outro. Seu é muito sedutor já tudo que ele criou foi feito para projetos específicos e pessoas específicas. Ele estudava o cenário da vida da pessoa e fazia um casamento entre o lugar e o sujeito criando peças perfeitas para cada ocasião. Ele conseguiu, ao mesmo tempo, ter uma variedade imensa de modelos que são distintos e uma linguagem única que é marca registrada do seu design. Ele conquistou umas coisas que acho muito difícil de serem alcançadas.

 

Seu trabalho foi muito importante para mostrar ao mundo que o Brasil tem design. Você acredita que ele foi um marco nessa questão da afirmação nacional dentro do design moveleiro mundial?

A motivação dele veio disso. Sérgio foi estudar a arquitetura e percebeu que na arquitetura de meados do século XX existiam varias representações da expressão brasileira. O Brasil já aparecia no cenário mundial da arquitetura, entretanto não tinha muito nomes no campo do mobiliário. Ele olhava para dentro dessa arquitetura e via somente o design europeu, já que não tinha uma identidade brasileira para colocar dentro das casas. O mote de Sérgio com o design foi o de justamente querer preencher esse espaço interno com algo que se comunicasse com a nossa cultura.

 

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